Completam-se, por estes dias, 30 anos de regime democrático no Brasil. Não há dúvida de que o país avançou bastante no período. Temos muito mais liberdade e justiça. O progresso social foi acentuado, como demonstram os indicadores de educação, saúde e rendimentos dos mais pobres. A superinflação, deflagrada pelo choque externo do começo dos anos 1980, com seus três ou quatro dígitos anuais, foi finalmente vencida a partir dos governos Itamar e Fernando Henrique. Isso se deu com ampliação das conquistas democráticas, ao contrário do que se viu entre 1964 e 1968. E que se destaque o papel fundamental da agricultura brasileira, que se tornou poderosa e altamente competitiva, em escala mundial. Temos, pois, razões para estar satisfeitos pelo caminho até aqui seguido. E nosso papel é cercar as margens de erro rumo ao futuro e evitar armadilhas.
Há, desde logo, um pesado déficit que coincide com a era democrática: o crescimento medíocre do conjunto da economia. Nos 30 anos que antecederam 1980, crescemos a mais de 7% ao ano; de meados da década de 80 até o ano passado, essa taxa recuou, na média, a 3%. Mesmo deflacionando os números pelo crescimento da população, declinante no cotejo desses dois períodos, a degradação da performance econômica brasileira é evidente.
Tal degradação deveu-se à desindustrialização prematura que atingiu o Brasil, a ponto de a participação da indústria manufatureira no PIB voltar ao nível do imediato pós-guerra: em torno de 12%. Digo “prematura” porque não se trata de um fenômeno parecido com o que se viu nos países desenvolvidos, com renda per capita equivalente a quatro vezes a nossa. A dinâmica das economias emergentes bem sucedidas, note-se, é outra: as que mais têm crescido nas últimas décadas devem seu desempenho precisamente ao dinamismo do setor industrial.
Sem reindustrializar o Brasil, não vamos obter vaga no segundo turno do campeonato das nações. Vivemos num país continental, com 200 milhões de habitantes e renda por habitante ainda na casa de US$ 12 mil/ano (paridade do poder de compra). Por melhor que seja a nossa condição de exportadores de produtos agrominerais, esse vetor nunca será capaz de puxar a produtividade do conjunto da economia, gerar os milhões de empregos de que necessitamos e turbinar as receitas tributárias para cobrir carências sociais e regionais. Não é uma questão de gosto, mas de fato. Aliás, a propósito da utopia da economia primário-exportadora como o principal fator do desenvolvimento brasileiro, vale ler o interessante artigo de Ilan Goldfajn publicado nesta página na última terça: a tendência de longo prazo dos preços internacionais de alimentos é de lento e persistente declínio em termos reais.
Em parte, a desindustrialização prematura se deveu a uma combinação de quatro fatores, com pesos diferentes ao longo do tempo: 1) o mau entendimento das mudanças no mundo na direção de maior abertura comercial e ampla e irresistível liberdade para movimentos de capitais; 2) a superinflação e suas consequências; 3) as ideologias, à esquerda e à direita, que menosprezam políticas coerentes de desenvolvimento; 4) o despreparo e a pura inépcia do governo.
Um dos problemas mais graves que decorrem de políticas públicas deficientes se revela no custo-Brasil, que expõe nossa baixa competitividade em relação à média dos parceiros comerciais. Os produtos manufaturados brasileiros são 25% mais caros do que poderiam ser não em razão da ineficiência empresarial — nas condições dadas, há eficiência — mas por causa das carências de infraestrutura, das despesas financeiras e de uma tributação aloprada. Para arremate dos males, subsistiu durante boa parte dessas três décadas a sobrevalorização cambial.
E há um custo que tem sido subestimado pelos analistas que é a conversão reacionária do PT. O que quer dizer? Explico: associado ao declínio econômico e aos fatores que o provocaram, assistimos, com a ascensão do partido ao poder, ao fortalecimento e ao infeliz “aggiornamento” do patrimonialismo, que tanto infelicitou a história brasileira. Ele se expressa de dois modos principais: 1) com a formação de uma espécie de burguesia do capital estatal; 2) com a submissão da máquina do Estado a instrumentos que servem à manipulação eleitoral e aos desvios de recursos públicos para partidos e indivíduos. Vejam o calvário da Petrobras.
A crise de representatividade da democracia brasileira, cujo primeiro sinal foram as manifestações populares de meados de 2013, chegou ao seu ponto máximo neste semestre. Tudo de ruim veio junto, começando pela percepção generalizada do estelionato eleitoral.
Reeleita, a presidente Dilma não conta com um fator que costuma beneficiar um novo governante: o crédito de confiança. Como dispor dele, depois de quatro anos de tropeços que só agravaram a herança recebida do governo Lula-Dilma? Herança que, diga-se, já não era leve no início de 2011: real supervalorizado, déficit externo crescente, rigidez fiscal, investimentos industriais em declínio e subinvestimento na infraestrutura. E isso tudo se dava apesar da notável bonança externa, derivada do boom de preços de nossas commodities. Paradoxalmente, esses preços elevados serviram para desequilibrar ainda mais a economia brasileira.
O panorama hoje é especialmente perverso: queda da produção; inflação renitente, com viés para cima; déficit público em ascensão, caminhando para 8% do PIB; déficit externo idem, rumo aos 4,5% do PIB; juros siderais e desemprego como drama anunciado. A cereja amarga desse bolo maligno fica por conta do monitoramento subjacente da política econômica feito pelas agências internacionais de risco. Os petistas já devem andar com saudades do FMI…
A má notícia é que atravessaremos, sim, dias difíceis. A boa notícia é que os críticos relevantes dessa governança capenga entendem que não há saída fora das regras da democracia, esta respeitável senhora de 30 anos. Eventuais tentações autoritárias se revelam, isto sim, é no discurso dos poderosos de turno. Mas, como diria o poeta Mário Quintana, também eles “passarão”, e o regime democrático “passarinho”. E ele canta bons amanhãs.
SENADOR DA REPÚBLICA, EX-PREFEITO E EX-GOVERNADOR DE SÃO PAULO
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