A presidenta eleita, Dilma Rousseff, mostra disposição de que seu governo utilize valores de referência para calcular o número de pessoas pobres e o número de miseráveis que precisam de políticas públicas para garantir subsistência e melhorar as condições de vida. Os valores não foram divulgados, mas o estabelecimento das linhas de pobreza e de indigência permitem ao governo avaliar a eficácia dos programas sociais e assistir “os mais pobres dos pobres”, como dizem os economistas. Além dessa prioridade, Dilma quer focar na infância para cumprir a promessa de acabar com a miséria.
Para a economista Sônia Rocha, autora do livro Pobreza no Brasil: Afinal, de Que Se Trata?, cuidar das crianças é “o melhor caminho para romper o círculo vicioso da pobreza”. Esse tipo de investimento, segundo ela, pode gerar melhores garantias de emprego no futuro. Nos últimos anos, a participação de pessoas pobres no mercado de trabalho foi o principal fator para a melhoria da distribuição de renda.
Sônia Rocha é doutora em planejamento econômico pela Universidade de Sorbonne (França) e já trabalhou nas três principais instituições brasileiras que produzem e analisam indicadores socioeconômicos: o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e a Fundação Getulio Vargas (FGV). Atualmente, a economista é pesquisadora do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), no Rio de Janeiro. Ela concedeu essa entrevista à Agência Brasil por e-mail.
Agência Brasil: O futuro governo anuncia que adotará uma linha oficial de pobreza para avaliar os resultados das políticas sociais. A linha de pobreza serve para isso? Por que até hoje não há uma linha oficial?
Sônia Rocha: Não é a primeira vez que o governo federal anuncia esse tipo de iniciativa e espero que agora seja para valer. Seria a forma de ter parâmetros de referência para estabelecer metas de desempenho e acompanhamento da sua execução ao longo do tempo. Metodologicamente não há dificuldade, mas o governante corre sempre o risco de ter o ônus político de resultados aquém do esperado. Vale lembrar que, uma vez utilizando as linhas oficiais, o indicador de resultado não deverá ser apenas o número de pobres e/ou de indigentes (caso, como desejável, sejam adotados também parâmetros oficiais para as linhas de indigência). Caberia considerar outros indicadores, como, por exemplo, o que mede o nível de renda dos pobres, chamado de hiato da renda.
ABr: Como o governo deve calcular essa linha? Há alguma referência internacional interessante?
Sônia Rocha: Diferentemente da maioria dos países – mesmo os mais desenvolvidos, como os da Comunidade Europeia -, o Brasil tem, de longa data, um sistema estatístico rico. Isso significa que há muito dispomos de estatísticas que permitem estabelecer linhas de indigência (que correspondem ao custo da cesta alimentar básica) e linhas de pobreza (que correspondem ao custo de todo o consumo básico) a partir da estrutura de consumo observada entre os pobres. As estatísticas brasileiras permitem não só que se evite definir as cestas de forma normativa – isto é, uma cesta ideal ou padrão –, mas estabelecer a composição de cestas e seus respectivos valores para diferentes regiões e áreas rurais e urbanas. Assim é possível levar em conta a diversidade da estrutura de consumo e de preços ao consumidor em cada uma delas. Não há nenhuma dificuldade metodológica nem exemplos notáveis no exterior. A melhor solução a ser adotada no país significa apenas fazer o melhor aproveitamento da disponibilidade de dados estatísticos brasileiros. A esse respeito é importante lembrar que abordagens simples e muitas vezes toscas têm que ser utilizadas em outros países em função da falta de informações estatísticas, o que não é o nosso caso. Nesse sentido, duas características metodológicas para o estabelecimento de linhas deverão ser obrigatoriamente adotadas no Brasil, já que se dispõe de pesquisa atualizada e de cobertura nacional sobre orçamentos familiares (IBGE/Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008/2009): linhas baseadas no consumo observado e linhas diferenciadas por áreas geográficas.
ABr: Que valores a senhora calcula que devem ser estabelecidos para as linhas de pobreza e de miséria?
Sônia Rocha: Os valores são necessariamente diferenciados por áreas, por exemplo, mais alto nas regiões metropolitanas, onde o custo de vida dos pobres é mais elevado, e mais baixo em áreas rurais, onde ocorre o contrário. Há diferenças regionais e entre estados. A gama de valores a ser adotada depende de decisões quanto a especificidades de cunho metodológico, mas também de um consenso quanto ao nível de pobreza, que é política e operacionalmente aceitável para ser usado hoje como ponto de partida. Minhas estimativas de proporção de pobres e de indigentes, com base na última Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios], a de 2009, foram de, respectivamente, 21,8% da população (40,5 milhões de pessoas pobres) e 5,2% de indigentes (9,6 milhões de pessoas). A minha linha de pobreza mais alta tinha o valor de R$ 316,39 (metrópole de São Paulo) e a mais baixa R$ 83,24 (Norte rural). Esses valores referem-se ao custo do consumo mínimo de cada pessoa na família por mês.
ABr: Dentro desses critérios, quantos brasileiros são pobres e quantos são miseráveis? A senhora sabe a distribuição geográfica desses dois segmentos nas grandes regiões e estados?
Sônia Rocha: As regiões Norte e Nordeste permanecem como as mais pobres, e a Região Sul é aquela onde os índices de pobreza são mais baixos, com destaque para o estado de Santa Catarina. Vale lembrar que a área rural, onde os índices de pobreza já foram críticos e notadamente mais elevados do que os das áreas metropolitanas, tiveram melhorias significativas nos últimos 20 anos, apresentando hoje indicadores de rendimento semelhantes aos das áreas urbanas e metropolitanas.
ABr: Olhando em retrospectiva a última década, os índices de pobreza atestam se houve de fato aumento real de renda dos estratos mais baixos? Isso foi suficiente para diminuir a desigualdade? Por quê?
Sônia Rocha: O aumento de renda que vem se dando de forma mais acentuada para os mais pobres se reflete nos indicadores de pobreza, tais como o número de pobres, a proporção de pobres na população total e o hiato da renda. A desigualdade de renda diminui porque a renda dos mais pobres está crescendo de forma mais rápida do que a do resto da população.
ABr: Os supostos aumento da renda e elevação de estratos sociais têm sido atribuídos pelo atual governo, especialmente, ao ganho real do salário mínimo e ao Bolsa Família. Visto que no próximo ano será limitado o ganho real do mínimo e que o governo anuncia estar próximo da universalização do Bolsa Família, há riscos do esgotamento dessas fórmulas? Se sim, o que pode ser feito?
Sônia Rocha: O principal fator para a melhoria distributiva foi o funcionamento do mercado de trabalho, impactando com perdas menores os mais pobres quando a renda do trabalho caiu entre 1997 e 2003, e gerando ganhos maiores na base da distribuição no período de recuperação da renda do trabalho desde 2004. Esse resultado está em parte ligado à política de valorização do salário mínimo, mas também a melhorias associadas à educação e consequentes ganhos de produtividade da mão de obra. O Bolsa Família teve papel proporcionalmente importante em função dos baixos valores transferidos. No entanto, é possível ainda melhorar a focalização dos benefícios pagos e a cobertura da população-alvo, o que seria essencialmente uma questão de gestão do programa. Há também espaço para aumentar o valor dos benefícios pagos, o que depende de decisão política. Em ambos os casos, o resultado seria o aumento do impacto distributivo do programa.
ABr: O futuro governo também tem anunciado foco nas crianças na primeira e segunda infância. Como essa prioridade repercute em favor do aumento de renda das famílias mais pobres e, eventualmente, da diminuição da desigualdade?
Sônia Rocha: Essas medidas são prioritárias porque protegem melhor as crianças pobres hoje, que são, de fato, os indivíduos mais vulneráveis entre os vulneráveis quando na fase pré-escolar. Ademais, essas medidas são o melhor caminho para romper o círculo vicioso da pobreza, já que aumenta o capital humano das famílias pobres, criando a possibilidade de melhor inserção no mercado de trabalho mais adiante. A esse respeito é importante lembrar que as transferências de renda são medidas paliativas e que não há problema algum nisso: elas dão aos mais pobres a possibilidade de melhorar imediatamente o seu nível de vida, apesar de suas desvantagens estruturais no presente. Infelizmente, as medidas antipobreza mais eficazes, aquelas de proteção à infância (saúde, educação, atenção materno-infantil em geral), são medidas de custo mais elevado do que as transferências de renda, com retornos políticos menores e de operacionalização difícil devido aos problemas de gestão da rede de atendimento.
Agência Brasil