Fonte: Blog do HELIO GUROVITZ
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (foto), deverá decidir amanhã o que fazer com o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff apresentado pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal. Se aceitá-lo, caberá ao plenário da Câmara decidir se abre o processo – são necessários ao governo mais de 171 votos para impedir que isso aconteça. Se rejeitá-lo, a oposição deverá apresentar um recurso, que pode ser aprovado por maioria simples dos deputados, e novamento a abertura de processo irá a votação. Os olhos estarão, portanto, amanhã voltados para o que fará Cunha, cuja permanência na presidência da Câmara está em xeque desde que ficou claro que ele mentiu a respeito das contas que lhe são atribuídas na Suíça.
Mas é um equívoco brutal acreditar que apenas Cunha pode levar adiante o impeachment de Dilma. A situação dele se torna a cada dia mais crítica, mas não tem nenhuma influência nos crimes de responsabilidade atribuídos a Dilma. O maior deles é a violação sistemática da Lei de Responsabilidade Fiscal ocorrida em seu governo. Passei o fim de semana debruçado sobre o relatório do TCU apresentado para justificar a rejeição das contas do governo no ano passado. As evidências são tão acachapantes, que é preciso um cinismo atroz para negá-las, como vêm fazendo diversos políticos e articulistas ligados ao PT nos últimos dias.
Antes, é preciso entender o espírito da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e por que ela representou um marco na história do Brasil. Até a LRF, havia pouco controle real sobre como os governantes gastavam nosso dinheiro. Baseada em legislações semelhantes da Nova Zelândia e dos Estados Unidos, ela instituiu uma série de regras detalhadas para isso, com base em um princípio bastante simples: o governo não deve gastar mais do que arrecada. “A Lei de Responsabilidade FIscal é indiscutivelmente um dos maiores marcos normativos na era pós-Constituição de 1988”, afirmou em seu voto o ministro-relator Augusto Nardes. “Representa ganhos institucional e social inegáveis ao romper com paradigmas até então arraigados na cultura dos poderes da República.”
A essência da LRF é obrigar o estabelecimento de metas para os gastos públicos e exigir seu acompanhamento e revisão ao longo do ano, para verificar se são cumpridas. “A lógica orçamentára (…) só faz sentido em um cenário de constante avaliação e monitoramento da realidade – mediante o confronto dos dados apurados com as metas estabelecidas”, diz Nardes. Quando necessário, afirma ele, é preciso replanejar os gastos públicos, para evitar surpresas no final do ano, quando acaba o ciclo orçamento.
Ao todo, os auditores do TCU apontaram 18 problemas de naturezas diferentes nas contas do governo no ano passado. Nas palavras deles, foram constatadas “irregularidades graves – envolvendo o endividamento público, os resultados fiscais, a execução orçamentária da despesa, a limitação de empenho e movimentação financeira e a inscrição de despesas em restos a pagar no exercício de 2014”.
O primeiro fato digno de destaque no relatório do TCU é, simplesmente, o descumprimento da meta fiscal estabelecida para o ano. Houve um déficit primário de R$ 22,5 bilhões, em vez do superávit de R$ 116,1 bilhões previsto na lei orçamentária. O mesmo vale para os números relativos à dívida pública. A deterioração dos números é tão significativa, que o Brasil passou de uma economia de 2,07% do Produto Interno Bruto (PIB), em 2013, para uma valor negativo em 0,44% do PIB de 2014 – que demanda mais empréstimos no mercado e, portanto, faz o governo ter necessidade de pagar juros mais altos.
À medida que a situação fiscal se deteriorava, cabia ao governo impor cortes de despesas, conhecidos tecnicamente como contigenciamento. Em vez disso, ao final do quinto bimestre de 2014, o Ministério da Fazenda sustentava que não haveria essa necessidade e alegou que seria possível gastar ainda mais R$ 10 bilhões na rubrica “despesas discricionárias”. A quinze dias do final do ano, o Congresso aprovou uma lei permitindo aumentar as despesas que o governo estava autorizado a abater da meta fiscal, de modo que ela pudesse ser atendida. O relatório do TCU afirma que isso “promoveu uma inversão na lógica de controle estabelecida pela LRF”. O objetivo das metas é, obviamente, nortear os gastos – e não adaptar-se a eles quando o ano está prestes a acabar.
A outra irregularidade de destaque no relatório do TCU, aprovado por unanimidade na semana passada, ficou conhecida pelo singelo apelido de “pedalada fiscal”. Trata-se de uma artimanha usada pelo governo para favorecer sua situação contábil. O Tesouro Nacional, responsável pelo pagamento de benefícios sociais como seguro-desemprego, Bolsa-Família, Minha Casa Minha Vida e abono salarial, ou incentivos, como Pronaf, Revitaliza ou Programa de Sustentacão de Investimentos, atrasou sistematicamente o repasse aos bancos oficiais (Caixa, Banco do Brasil e BNDES) dos recursos necessários a boa parte desses pagamentos. Na prática, foi como se o Tesouro emprestasse dinheiro desses bancos sem que houvesse no Orçamento a autorização para isso. O TCU analisa em detalhes no seu relatório todas as modalidades de “pedalada”, em especial os atrasos de pagamento à Caixa, que somaram R$ 37,5 bilhões ao longo do ano.
Três argumentos falaciosos têm sido usados pelos partidários do governo para defender as “pedaladas”. O primeiro, usado pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência no próprio dia de reprovação das contas, pode ser chamado de “raciocínio Robin Hood”. Segundo esse raciocínio, as pedaladas se justificam porque o dinheiro foi empregado em programas sociais necessários. Trata-se de um argumento que não seria digno nem de ser pronunciado, muito menos de aparecer por escrito. Pela mesma lógica, desde que os gastos fossem destinados a programas sociais, pouco importaria a legalidade da origem do dinheiro – poderia vir de expropriação, roubo, confisco ou pedalada. Claro que essa lógica não para de pé.
O segundo tipo de falácia é afirmar que, no final do ano, as contas foram pagas e ficaram positivas – no caso da Caixa, em R$ 141 bilhões. Não haveria, portanto, como condenar o governo por atrasar os pagamentos, pois se tratou exclusivamente de uma questão técnica. Por essa visão, defendida pela Advocacia Geral da União, não houve a rigor um empréstimo dos bancos oficiais ao Tesouro, uma vez que eles prestam apenas um serviço ao administrar os pagamentos dos benefícios, pelo qual acabaram recebendo. O problema desse raciocínio é ignorar o que é uma “pedalada”. A “pedalada” é um atraso. Para manter a bicicleta contábil girando, claro que o pagamento tem de acabar por ser feito. Se não houvesse pagamento, seria um calote, não uma “pedalada” – e a bicicleta cairia.
É aí que entramos no terceiro tipo de argumento: afirmar que outros governos também atrasavam seus repasses aos bancos oficiais. Trata-se, antes de mais nada, de uma falácia clássica, conhecida entre os lógicos pela expressão latina “tu quoque”, ou “você também”. Ela sustenta que, se alguém cometeu um erro, então você e eu também estamos autorizados a cometer. É um absurdo flagrante. Ora, se o TCU deixou de punir governos anteriores por atrasos nos repasses aos bancos oficiais, isso nada tem a ver com a situação deste governo no ano passado – e é ela que está em discussão.
Gráfico extraído do relatório do TCU sobre as contas do governo com o saldo das contas-benefício na Caixa ao longo dos anosAinda que esse argumento fosse desprezível por si só, o TCU foi além na análise dos números para derrubá-lo. “A magnitude das operações realizadas em 2014 e seu impacto negativo sobre o resultado fiscal podem ser considerados ponto fora da curva, sem precedente nas duas últimas décadas”, diz o relatório. As contas usadas pelo governo para realizar os pagamentos de seus benefícios na Caixa ficaram negativas, respectivamente, em 169 dias para o seguro-desemprego; 73 dias para o abono salarial e 55 dias para o Bolsa-Família – em um total de 253 dias úteis. O relatório apresenta gráficos para todas elas. Destaco apenas um, por eloquente: o saldo diário somado de todas as contas do governo na Caixa, ao logo dos últimos anos (acima). Em 2013, o quadro já era gritante, mas alguma dúvida de que 2014 foi um ano atípico?
O mesmo princípio, segundo o relatório, foi usado para não prejudicar o caixa do governo em duas outras ocasiões. Primeiro, no atraso sistemático de repasses do Tesouro ao BNDES e ao Banco do Brasil para compensar perdas dos bancos com programas de incentivo do governo (Pronaf, Revitaliza, Programa de Sustentação do Investimento e crédito agrícola). Segundo, no uso de recursos do FGTS para financiar o Programa Minha Casa Minha Vida, sem a transferência correspondente de dinheiro do Tesouro.
Num eventual processo de impeachment, a defesa do governo sempre poderá atribuir esses procedimentos ao então ministro da Fazenda, Guido Mantega, ou a seu secretário do Tesouro, Arno Augustin. Em um ponto, porém, a responsabilidade é inequivocamente da presidente Dilma: a falta de contingenciamento de recursos para cumprir as metas fiscais. “Fica patente que a crise econômica não afetou as contas públicas apenas no quinto bimestre de 2014”, diz o relatório. “Pelo contrário, o Governo realizou um resultado primário negativo de R$ 28 bilhões entre maio e agosto, quando estava previsto um resultado para o período de R$ 11,5 bilhões. Isso evidencia claramente que a meta estabelecida não seria cumprida.”
Eis o que concluem os auditores do TCU a respeito, no único trecho grifado em um relatório com quase 2,8 milhões de caracteres: “A irregularidade em foco, consistente em omissão no dever de limitação de empenho e movimentação financeira (falta contingenciamento de despesas discricionárias da União), no montante de pelo menos R$ 28,54 bilhões (…) é de responsabilidade direta da Presidente da República, no exercício do Poder Regulamentar, haja vista o disposto no art. 84, inciso V, da Constituição Federal, segundo o qualcompete privativamente à Presidente da República expedir decretos e regulamentos para a fiel execução da lei”.