HUMBERTO PINHO DA SILVA
Quem, já entrado em anos, não se recorda da casa onde nasceu e foi criado? No correr da vida, a velha moradia, torna-se, por magia do tempo, numa saudade, onde as raízes mergulham, e as recordações de infância animam-se como se fossemos ainda meninos.
Aquelas velhas paredes de estuque e fasquio presenciaram a nossa puerícia, conheceram segredos e viram os angustiosos paroxismos dos nossos avós e pais.
Eram de cantaria, de amplas divisões e minúsculas saletas, com traves que estalavam no Estio e gemiam fustigadas pelas intempéries desabridas, em frigidíssimas noites invernosas.
Fossem de alvenaria ou pedra ensossa, essas casas velhinhas, tem alma, e enquanto viverem, unem a família, mesmo quando se dispersa e se aparta para paragens longínquas.
A casa de meu pai tinha mais de duzentos anos. As janelas eram de guilhotina e o soalho, lurado, rangia a cada passada descuidada. Ao centro estava a escadaria. Tinha vários patins, um saguão e cave que dava acesso aos alicerces.
Em menininho receava descer aos andares inferiores, que eram sombrios e visitados por ratazanas, que se esgueiravam ao mais leve ruído.
Cada salinha tinha história. Numa falecera a avó arrimada à imagem da Virgem; noutra perecera a avozinha Júlia, que ao entardecer rezava as Avé – Marias voltada para a igreja matriz.
No amplo salão da frente, que tinha sacada gradeada, havia – dizia meu pai, – o piano de cauda, que pertencera à avó Sofia, que fora pianista e dava lições a meninas prendadas.
No topo das escadas, em lugar eminente um enorme quadro, de larga moldura doirada, representava a descida da Cruz.
Contava-se que pertencera a antepassado, cujo nome se perdera, que fora para a guerra. A demora foi grande e os herdeiros deram-no morto e despejaram a casa.
Uma bela manhã regressou. Encontrou a residência despojada das melhores alfaias e ao observar a gravura, exclamou lacrimejando de júbilo.
– Graças ao Senhor, deixaram o que mais valor tinha para mim!
Essas casas velhinhas carregadas de História e histórias, que teimam destruir, em lugar de restaurar, encontram-se impregnadas de ancestrais tradições e não são só pertença da família que as habitam, mas à cidade onde se encontram.
A casa onde nasci já não existe. Após o falecimento de meu pai, o camartelo desventrou-a, derrubou as traves seculares, desfigurou-lhe a fachada, dividiram-na em apartamentos, tudo em nome do progresso; com ela morreu um pouco de mim e todos que nela viveram e morreram.
HUMBERTO PINHO DA SILVA – Porto, Portugal