Osvaldo Coggiola – (professor titular de história – USP)
Nos últimos três meses, as maiores mobilizações pós-ditadura evidenciaram o acirramento da luta de classes no Chile. Com duas poderosas greves nacionais, em 30 de maio e 5 de junho, estudantes e docentes puseram por terra o projeto de manutenção da Lei Orgânica Constitucional do Ensino, ditada por Pinochet no último dia de sua ditadura. A educação secundária chilena é exemplo da realidade do país. Antes do golpe, o ensino estatal encontrava-se entre os melhores da América Latina. Com a ditadura, as escolas públicas foram municipalizadas e entregues a sua sorte. Os colégios públicos permaneceram sem refeitórios, salas de aulas ou bibliotecas, necessários pelo acréscimo da jornada de estudo e dos anos de escolarização (para não tocar o princípio da divisão classista do ensino, o presidente “socialista” Lagos empreendeu reforma da educação com escolarização obrigatória de doze anos e maior permanência dos alunos nas escolas, sem realizar investimentos).
O ensino privado pago passou a ser financiado pelo Estado. Consolidaram-se colégios extremamente caros para os filhos dos grandes proprietários. Nesse sistema de castas, o estudante de escola privada custa quatro vezes mais ao Estado do que o de colégio público. A diversidade entre a escolarização do estudante pobre e do rico garante o monopólio da universidade, fortemente privatizada, aos segundos. Não mais de 5% dos alunos chegados das escolas públicas vencem a Prova de Aptidão Acadêmica, que também passou a exigir taxa de inscrição. Esse é o “modelo chileno” tão elogiado pelos privatistas da educação brasileira! Os estudantes chilenos possuem riquíssima tradição de luta. Secundaristas e universitários morreram às centenas combatendo o golpe e a ditadura de Pinochet.
A greve geral de 30 de maio passado, com mais de 600 mil estudantes em luta, seguida de mobilizações e confrontos nas principais cidades, obrigou finalmente à presidenta Bachelet a conceder, a 1º de junho, parte das reivindicações estudantis: gratuidade, para estudantes pobres, do vestibular e da passagem escolar; bolsas para mais de 150 mil estudantes; aumento de duzentas mil refeições diárias; melhorias em meio milhar de liceus. Os secundaristas realizaram a maior greve desde o fim da ditadura, obtiveram conquistas substanciais, ganharam a população para a reivindicação do ensino público gratuito. Durante as eleições, o mote de campanha fora “Bachelet: estou contigo!”. Nas fachadas dos liceus ocupados, dependuraram-se, aos milhares, cartazes com a pergunta: “Bachelet, estás comigo?”. A repressão policial e prisão de milhares de estudantes não frearam o movimento. Os confrontos entre jovens e carabineiros acirraram-se, sobretudo no centro de Santiago. Combateu-se duramente na avenida Bernardo O’Higgins, palco histórico das lutas estudantis.
A segunda greve geral, de 5 de junho, exigiu a maioria estudantil em Conselho Assessor de caráter decisório, a generalização das concessões acordadas, a responsabilização pelo Estado do ensino público. Com 600 mil secundaristas e 300 mil universitários, recebeu o apoio de mais de cem organizações sindicais que interromperam o trabalho por duas horas. Nas marchas que percorreram as capitais chilenas participaram professores e funcionários públicos. Em Valparaíso, entre os doze mil manifestantes, encontravam-se trabalhadores portuários, da construção, dos serviços públicos. O governo, a mídia e as organizações patronais denunciaram a instrumentalização da luta estudantil pelo sindicalismo classista, como se a luta dos filhos não dissesse respeito aos pais! Em inícios de julho, manifestações 150 mil pessoas, de estudantes e docentes, percorreram Santiago, exigindo o aumento substancial do aporte estatal à educação pública, que é hoje de 4% do PIB. A luta continua. Foram ocupados mais de 200 liceus e 30 universidades. O sindicato Codelco realizou uma paralisação nacional a 11 de julho, aniversário da nacionalização da indústria mineira por Salvador Allende.
A jornada semanal de trabalho chilena é de 48 horas, uma das mais altas do mundo. A saúde, previdência, educação, lazer e segurança privatizados corroem a economia familiar vergada pelo endividamento bancário. 45% da população vive na pobreza. Os contornos da crise mundial se projetam nitidamente no país: a dívida privada duplicou na última década pelo incremento do uso de cartões de crédito, com juros elevados (50% real anual) – a hipoteca dos lares chilenos atingiu 62,5 bilhões de dólares em 2009, 39% do PIB, quase 4.000 dólares por habitante. O governo revelou que 500 mil pessoas se tornaram pobres depois do terremoto de março de 2010. O desemprego aumentou de 15,1% para 19,4%. A luta presente á só o primeiro ato de um levantamento geral dos explorados contra as conseqüências sociais e políticas dos governos militares, democrata-cristãos e da “esquerda” democratizante e pró-imperialista (Lagos e Bachelet). Nessa perspectiva se põe na ordem do dia a estruturação de uma alternativa política revolucionária.