Num dos vídeos postados no site chicobastidores.com.br, como forma de criar interesse antecipado (os modernos teasers) pelo novo álbum de Chico Buarque, o violonista e diretor musical Luiz Cláudio Ramos comenta que uma das faixas do CD, Barafunda, é ‘um samba de velho’. ‘São as lembranças que não são mais claras. É o Chico lidando com o amadurecimento dele.’ O personagem da canção lembra o velho doente do livro Leite Derramado, mas não é o único momento do bom CD Chico (que chega aos consumidores em forma física no dia 20, com 4 mil exemplares vendidos antecipadamente pela gravadora Biscoito Fino) em que o autor lida com a ação do tempo e sua adaptação de homem maduro à modernidade do século 21.
O uso da internet como plataforma de divulgação de seu CD não é a descoberta da pólvora, mas para ele é uma ferramenta nova e um tanto difícil de lidar. Até porque foi dessa forma que descobriu, confessadamente espantado, mas com altivez e bom humor, que não é mais a ‘unanimidade nacional’ da década de 1970 – alvo inclusive dos ataques de internautas recalcados.
Nas canções, essa questão do tempo se manifesta, sempre com leveza poética, em Essa Pequena (‘meu tempo é curto, o tempo dela sobra/ Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora’), falando da relação de um homem maduro com uma mulher jovem; e Tipo Um Baião, em que utiliza vícios de linguagem da geração shopping center-MP3 para expressar conflito próximo ao das personagens da outra canção, contrapondo-se à ‘pequena’, garota no sentido figurado, fora de uso há décadas no vocabulário masculino.
Se Eu Soubesse, outra canção amorosa, tem a participação da novata cantora Thaís Gulin, que especula-se ser sua nova namorada, com menos da metade da idade dele. O guitarrista Frado (Fernando Monteiro), da banda de Thaís, dá seu toque de modernidade introduzindo distorções na parte final de Tipo Baião.
Enfim, tipo moderno, Chico alude ao contemporâneo – como na letra de Nina (‘Nina diz que seu eu quiser eu posso ver na tela/ A cidade, o bairro, a chaminé da casa dela’), em que sugere penetrar na intimidade da personagem, indo além da capacidade invasiva do Google Maps. Porém, experimenta a diversidade sonora, com ritmos e gêneros todos considerados ‘velhos’ – choro, canção, samba, baião, valsa, blues, marchinha, toada, afro-samba. O próprio formato de canção como se conhece, de acordo com o que o próprio Chico já alertou, é típico do século passado. E daí?
No formato e nos arranjos, Chico abre discretamente caminhos divergentes de seu habitual universo criativo, como na desconcertante Rubato, parceria com o baixista Jorge Helder, uma das melhores faixas. ‘Não é baião, não é blues, não é samba, é tudo tipo alguma coisa, tipo baião, tipo samba. É um tipo disco’, brinca Chico.
Sem Você 2, outra canção de amor das mais elaboradas, também tem ligação com outros tempos. A referência óbvia é Sem Você, uma das primeiras parcerias de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, de que Chico gosta ‘desde sempre’. Chico teve a oportunidade de gravá-la com o próprio Tom, no songbook dele. ‘Enfim, eu me apropriei um pouquinho dessa música, coloquei no meu penúltimo show, é uma música muito presente’, diz, num depoimento em vídeo. ‘Então quando veio essa minha música, a letra falava ‘sem você’, quis dar um outro título pra ela, mas não cabia’, prossegue. Então Chico propôs a Luiz Cláudio Ramos a introduzir a música com uma lembrança da canção original de Tom e Vinicius.
Amadurecimento. Para Ramos, esse trabalho reflete o ‘amadurecimento mesmo’, tanto em termos de letra e desenvolvimento literário. De fato algumas faixas são histórias em forma de canção, como é o caso do sensacional afro-samba Sinhá, parceria com João Bosco, que narra o açoite de um negro no pelourinho por supostamente ter visto a tal sinhá despida. Autor da melodia, Bosco contribuiu com seu violão inconfundível, assovio e vocal.
Rubato, que significa roubado em italiano, é uma letra ‘espelhada’ sobre um compositor que rouba a música de outro, que foi roubada de outro. ‘Ele aproveita e já adapta a música para a namorada dele, a primeira era Aurora, essa aí já adapta a música pra Amora, que por coincidência rimava com a namorada do primeiro compositor e no fim já tem um terceiro compositor, um terceiro ladrão, que fez a música pra Teodora’, diz Chico.
O compositor também revela-se mais apurado como instrumentista, além da riqueza melódica e harmônica do CD, com a contribuição de sua impecável banda. Segundo Ramos, Chico não gravava tocando violão, como nesse disco. ‘Acho que possivelmente ele está se sentindo mais seguro em participar como músico mesmo com a gente’, diz o violonista. ‘A gente começou a ensaiar e eu fui tocando. Ninguém falou nada, ninguém tirou o violão da minha mão’, diz Chico. ‘Aí, pra minha surpresa, quando eu vi, tinha no estúdio um microfone pra gravar. Não falei nada.’ Ele brinca, aludindo a seus dotes futebolísticos, que se tivesse com as mãos a metade da habilidade que tem com os pés seria um Paco de Lucia. ‘Eu literalmente meto os pés pelas mãos. O ideal pra mim seria isso, seria poder ser um melhor instrumentista, confiar mais nas minhas mãos e gravar à vera, violão e voz junto com os músicos. Como se fosse um show ao vivo.’
Outro fator que contribuiu para o impecável resultado sonoro foi a possibilidade de ensaiar sem pressão. A ideia de trabalhar nessa linha foi do maestro, ‘um pouco pelo fato de Ramos ter agora um estúdio em casa’, explicou o compositor. Isso facilitou as coisas,pois geralmente quando se chega a um estúdio para gravar há uma contagem do tempo (‘tem um ‘taxímetro’ rodando ali’), que é sinônimo de custo. No estúdio de Ramos não havia tal cobrança. ‘Tínhamos o nosso horário, a gente ficava mais à vontade para trabalhar. Quando chegamos aqui as músicas já estavam prontas, entrávamos no estúdio mais conscientes do que era o disco.’